03/03/2019
Embora só ontem eu tenha chegado em São Paulo, e embora seja prudente deixar a poeira baixar para comentar o congresso, resolvi colocar hoje mesmo um pouco do que vivi, aproveitando o calor das lembranças. Tentarei ser breve.
O tom mais importante do congresso, no meu modo de ver, foi a ideia de que nosso velho romantismo está mesmo moribundo, pois é chegado o tempo de provar que a Gestalt-terapia realmente é uma abordagem psicoterapêutica que funciona. Esse tom foi dado já na palestra de abertura do evento, por Otto Glanzer, gestalt-terapeuta alemão. Ele nos contou que na Alemanha os profissionais precisam ser acreditados por um conselho, o qual, por sua vez, se baseia em pesquisas que evidenciem que tal ou qual abordagem provoca resultados nos tratamentos. Essa prova somente poderia vir de pesquisas cientificamente comprovadas. Então, lá, a abordagem gestáltica está praticamente sem espaço, o que tem, inclusive repercussões para a vida financeira dos colegas gestaltistas, pois os convênios (ou o que for equivalente lá) só pagam atendimentos acreditados pelo tal conselho. Depois outros colegas de outros países europeus fizeram relatos semelhantes, o que me faz pensar que logo, logo teremos o mesmo tipo de dificuldade aqui no Brasil.
Disso decorre um cuidado importante, também debatido no congresso, sobre como pode se dar este encontro entre a clínica e a pesquisa. É preciso que o aspecto sensível e artístico de nosso trabalho não seja sufocado pelo aspecto racional e científico que teremos que desenvolver.
O congresso foi estruturado de modo a que de manhã só houvesse sessões plenárias e de tarde encontros paralelos. Havia colegas de 22 países, desde Singapura até a Austrália, passando pela Rússia e por inúmeros países europeus, sul, centro e norte-americanos. Foram apresentados alguns trabalhos que tentam fazer a ponte entre as neurociências e a Gestalt-terapia de maneira muito interessante, como, por exemplo, o trabalho de Stella Resnick, dos EUA, mostrando através de aportes neurocientíficos a força da presentificação, um dos importantes conceitos da abordagem gestáltica.
Uma colega do Chile, ex-gestaltista, nos mostrou que já há uma associação internacional de pesquisa em psicologia e psicoterapia, da qual ela é, me parece, presidente regional. Consoante com esse olhar, colegas de diversos países apresentaram, nas atividades paralelas, pesquisas que desenvolvem em seus institutos, quer seja sobre a própria psicoterapia, quer seja sobre diagnóstico, quer seja sobre temas sociais. Neste último, destacou-se, para mim, o pessoal do México, com trabalhos corajosos em áreas de violência e de violência contra as mulheres. Foram destacadas as diversas formas de se fazer pesquisa em nossa área, como, por exemplo, a pesquisa baseada em caso único, que acabou sendo a que mais vi lá.
Nas áreas que mais me interessam, a psicoterapia e a compreensão diagnóstica, houve trabalhos interessantes. Francesetti e Roubal apresentaram uma mesa em que distinguem 3 formas de se fazer terapia, uma focada no cliente, outra na díade terapeuta-cliente, outra no campo, defendendo que esta seria a melhor (ou a única) maneira de se fazer terapia em Gestalt-terapia. Foram muito enfáticos e contaram com a concordância (em outra apresentação) de Spagnuolo, mas não com a minha. O que me parece é que esses colegas, que são maioria na Europa, ao enfatizarem tanto o campo, perdem de vista que a dinâmica da terapia passa pelos três momentos, cada um a seu tempo e hora, a depender sempre de como podemos ser mais úteis a nossos clientes. Houve na apresentação deles um ou-ou que não me agradou, como não me agrada há muito tempo, pois entendo que uma das mais belas bases da Gestalt é o E.
A ansiedade também foi tema de alguns colegas, especialmente da Itália. Francesetti apresentou um belo trabalho, baseado em seu livro e com um estudo de caso único, compreendendo a síndrome do pânico como um momento de crise na passagem do Oikos (o contexto familiar protegido) para a Polis (o mundo externo, segundo este autor), uma crise marcada por intensa vivência de solidão e abandono. Outro colega italiano, Sperande, compreende a síndrome do pânico como raiva retrofletida. Este não apresentou caso clínico, apenas suas convicções.
Diversos colegas de diversos países apresentaram protocolos, já desenvolvidos ou em desenvolvimento, que poderiam apoiar essas pesquisas que se fazem necessárias. Houve também mesas em que se apresentava como anda a Gestalt-terapia em diversos países, separados por região. No que diz respeito à América do Sul, Celana Andrade fez uma bela síntese do que temos vivido aqui.
Por falar em Brasil, fomos poucos os brasileiros que nos apresentamos por lá. No primeiro dia, eu e meu grupo apresentamos o que temos descoberto e desenvolvido quanto à prática da terapia breve. Selma Ciornai apresentou, com a competência de sempre, uma conferência sobre como se pode pesquisar em arteterapia gestáltica. Marcos Müller apresentou um novo livro e uma palestra sobre o uso da literatura no espaço clínico, atividade que não pude assistir porque coincidiu com a do Francesetti sobre a síndrome do pânico. Celana apresentou ainda um pôster. Havia algumas colegas brasileiras na plateia, em menor quantidade do que seria desejável, embora se deva considerar que o congresso foi caro.
Por fim, os colegas do Chile fizeram diversas apresentações, a maioria buscando comprovar cientificamente a rica teoria de Nana Schnake. Exceção para Ricardo Jimenez, que apresentou sua tese, muito importante e interessante, sobre o diagnóstico em Gestalt.
Em síntese, parece mesmo que a realidade pede um novo ajustamento criativo à abordagem gestáltica, desta vez no sentido de abrir-se para as pesquisas segundo critérios científicos, para comprovar a eficácia que conhecemos na prática. Isso não se dará sem conflitos, mas me parece que é inevitável. Teremos que desenvolver metodologias para pesquisar em Gestalt e, nesse sentido, estranhou-me que, num congresso de uma abordagem fenomenológica, se falasse tão pouco, quase nada, sobre pesquisa qualitativa – talvez somente um colega do México, Hugo Almada Mireles, tenha tocado neste ponto tão precioso para nós. É também inevitável que tenhamos que abrir ainda mais nosso olhar para a Gestalt fora do consultório, mais comunitária, como enfatizaram e mostraram alguns trabalhos apresentados no congresso, especialmente por colegas mexicanos, norte-irlandeses e suecos.
A última mesa do congresso tinha como tema “presente e futuro da Gestalt” e não me deixou nada otimista.
Pra fechar: o clima do congresso foi bem diferente de outros de Gestalt de que já participei. Mais frio, mais formal, mais sério, “um congresso europeu no Chile”, como bem definiu Selma Ciornai. Ainda que neste clima, as questões colocadas me pareceram de extrema relevância. Temos que nos encorajar a pesquisar, preservando a alma libertária da abordagem gestáltica. Um belo desafio!
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